sexta-feira, maio 02, 2008

Dissuasão e o Rigor da Lei

No post anterior listei a dissuasão como o terceiro objetivo a ser alcançado pela aplicação da Justiça, ou seja como elemento preventivo à criminalidade. Vale discorrer em mais detalhes sobre esse aspecto face aos infindáveis e improdutivos debates sobre o aumento ou não das penas em crimes hediondos, progressão de penas e maioridade penal abaixo de 18 anos.

Para a minoria de potenciais criminosos para os quais a moralidade não será freio interior para a execução ou não de um crime, a avaliação do risco que irá correr ao cometê-lo será o único fator levado em consideração na decisão.

Risco pode ser definido usualmente como a composição, algebricamente o produto, da probabilidade de ocorrência do evento com a conseqüência ou "montante" associado. Se o "valor" dessa operação for superior ao prêmio esperado pela consecução de um crime, o potencial criminoso tenderá a preferir não realizá-lo.

Nesse caso a probabilidade em avaliação será a de ser pego, incriminado, julgado e finalmente punido e o "montante" associado será a pena a pagar (tipo e duração ou quantia quando financeira).

Nesse contexto, podemos pensar que a "penalidade mínima" a ser fixada para qualquer delito seja aquela que anule o "prêmio" esperado pelo potencial criminoso em uma condição de certeza (100% de probabilidade) de punição. Então claramente existe um limiar do nível de punição aplicável abaixo do qual se torna ineficaz como elemento dissuasório o sistema judicial existente mesmo não havendo impunidade!

No outro extremo hipotético teríamos o conceito de "penalidade máxima", definida como aquela que ainda desestimularia a prática de um crime mesmo diante de um chance ínfima de se julgar e condenar um criminoso. É claro que como valores morais impõem os conceitos de proporcionalidade da pena ao delito cometido bem como de limites humanitários, não seria uma alternativa aceitável termos um sistema de nenhuma repressão (polícia investigativa, etc.) onde os criminosos só seriam apanhados aleatoriamente em flagrante delito mas a pena única fosse a morte (possivelmente lenta e dolorosa). Aqui entraria também um outro fator de cunho mais psicológico: a percepção de risco não é usualmente simétrica e as pessoas tendem a perceber uma situação de baixíssima probabilidade mesmo que de conseqüências inaceitáveis como mais benigna que sua simétrica (alta probabilidade, baixa conseqüência). Além disso, nesse caso específico, o senso de universalidade da Justiça, ou seja, ela só se dá se for para todos e a todos alcançar, é por si só um valor fundamental.

Sabemos que em nenhum lugar do mundo o sistema repressor policial e judiciário pode ser 100% eficaz, ou seja, a probabilidade de um criminoso ser pego é, de forma geral, necessariamente menor do que 100%. Num contexto de incerteza, portanto, devemos esperar que as penalidades estabelecidas sejam algo superior àquelas mínimas definidas acima para compensar as chances de eventual impunidade, mantendo o mesmo poder dissuasório de modo que os "azarados" criminosos efetivamente punidos sirvam de exemplo aos demais.

Caso a dissuasão fosse o único ou principal objetivo para a aplicação da Justiça, e não é, como já discorremos no post anterior, o Estado poderia almejar um balanço "economicamente ótimo" entre o elenco de penas estabelecidos (custo zero) e o tamanho e qualidade do sistema repressor e investigativo (que custa para ser mantido) que ainda fosse eficaz no seu aspecto dissuasório. De qualquer modo, é razoável inferir que as sociedades de alguma forma busquem compensar seu nível de ineficácia em levar os criminosos a pagar por seus crimes com um endurecimento das penas em relação as que seriam "suficientes" em uma situação ideal de impunidade zero.

Lembrando que no Brasil a pena máxima de reclusão é de 30 anos e que a progressão de pena para outro regime após cumprido apenas um sexto reduz o período de reclusão para 5 anos (ou 60 meses) efetivos, podemos considerar esse valor como a penalidade máxima aplicável no Brasil para qualquer crime. Se considerarmos que apenas em torno de 1% dos crimes cometidos levam a condenações, o "valor" máximo do risco para se cometer ou não um crime é de 0,6 meses de reclusão. Qual o poder dissuasório do sistema penal brasileiro?
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Enquanto medidas como o aumento do cumprimento mínimo de uma pena de reclusão para algo como a metade e a redução de maior idade penal para 16 anos não forem tomadas, não melhoraremos nada a nossa percepção de injustiça. Além disso, qual o investimento necessário para aumentarmos em uma ordem de grandeza, ou seja, para algo em torno de 10%, a eficácia em condenações do nosso sistema judicial?

Valores Essenciais da Justiça

Em reportagens ou debates sobre temas como impunidade, eficácia ou não do aumento de penas, "re-socialização" de criminosos e etc., é comum a ausência de percepção (ou a presença do diversionismo como arma da guerra cultural revolucionária) de articulistas e debatedores sobre os valores essenciais, ou por que não dizer dos fundamentos, da Justiça em nossa civilização. Bem mais importante que a simples coleção de valores ou princípios, o entendimento da hierarquia ou ordem de precedência desses valores impede o encaminhamento de ações efetivas nos campos da justiça e da segurança pública.
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A lista hierarquizada de preceitos que apresento a seguir não pretende ser completa, mas faz parte do "senso comum" do nosso legado civilizatório, acessível a qualquer cidadão leigo (não jurista), e se presta a colocar em perspectiva aspectos fundamentais muitas vezes ausentes dos debates:
  1. Reparação: a Justiça exercida pela sociedade é fruto do progresso civilizatório em frente da vingança ilimitada exercida pelos indivíduos ou de seus sucedâneos moderadores ("olho por olho, dente por dente"). Prover reparação proporcional ao dano causado às vítimas ou seus familiares é o alicerce e objetivo fundamental da aplicação da Justiça, que quando sistematicamente não satisfeito, paulatinamente nos devolve à barbárie. O senso de justiça ou reparação se estende das vítimas diretamente afetadas para a toda a sociedade e é elemento primordial de manutenção de nossos valores éticos e morais. Tais valores impõem também que haja limite na reparação exigida ao perpetrador de um crime, segundo regras pré-estabelecidas e aceitas pela sociedade. A lentidão na aplicação da justiça impede muitas vezes o provimento da reparação devida, frustrando portanto a aplicação da própria Justiça,
  2. Proteção: nos casos em que o criminoso represente uma ameaça para as demais pessoas, seu afastamento do convívio social, por reclusão, é o segundo aspecto fundamental.
  3. Dissuasão: a aplicação da Justiça deve ser elemento dissuasório e exemplar para que outros indivíduos se sintam desencorajados a perpetrar crimes. Valores morais adequados são os principais elementos que mantém a maioria da população de uma sociedade saudável longe de práticas criminosas. Para os demais, a decisão ou não de se cometer um crime virá de uma análise de risco, que é a composição entre a probabilidade de ser pego, julgado e condenado com a consequência (pena ou reparação) que terá que sofrer. Esse aspecto será mais desenvolvido no próximo post.
  4. Quitação: o cumprimento da Justiça, ou seja, a prestação da reparação pelo criminoso, lhe provê a quitação de seu débito para com a sociedade, incluindo suas vítimas, de modo que alguém não tenha que pagar múltiplas vezes pelo mesmo erro, e é elemento fundamental da Justiça.
  5. Recuperação: espera-se que a aplicação da Justiça se dê de forma a ser elemento educativo no sentido de que o cidadão que cometeu um crime possa retornar ao convívio social com o firme intuito de não mais errar. Porém, esse aspecto que muitas vezes é tratado como o de maior prioridade pelos "agentes sociais", deve ser preocupação subsidiária da sociedade após os demais quesitos terem sido satisfeitos.

A frequente inversão ou relativização desses valores desvirtuam a adequada abordagem do descalabro na segurança pública, corrupção e senso de impunidade generalizadas.

terça-feira, janeiro 01, 2008

"Terrorista quem, eu"?

Em 29/11 o jornalista Jaílton de Carvalho de O Globo publicou reportagem sobre a desistência do governo, via Gabinete de Segurança Institucional (GSI), de enviar projeto de lei ao Congresso que tipificasse o crime de terrorismo. Para o general Jorge Félix do GSI "qualquer definição de terrorismo como crime capitulado no Código Penal seria mortal para movimentos sociais e grupos de resistência política." Como movimentos sociais leia-se MST e assemelhados que já haviam sinalizado forte resistência a simples idéia da inclusão no código penal do crime de terrorismo.
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Viu-se então o governo numa baita encrenca já que muitos "companheiros", de viagem ou não, podiam ser derradeiramente enquadrados na nova lei. E o general Jorge materializou explendidamente o imbróglio na pérola de lógica: "Tentamos e não conseguimos (conceituar o crime de terrorismo) exatamente por essa dificuldade de caracterizar o terrorismo sem caracterizar como terrorista outras ações que, nitidamente, não são terroristas." Ora cáspitas, se não é técnica e logicamente viável caracterizar o crime de terrorismo sem incluir diversos movimentos ou grupos, é por que talvez eles sejam mesmo terroristas, ora bolas!...
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Em artigo de 24/12 em O Estado , André Luís Woloszyn definia melhor o que o governo estava evitando tipificar como terrorismo: "Entre os argumentos utilizados, o de que uma lei antiterror, entre outros aspectos, atingiria os movimentos sociais, notadamente em ações como invasões de hidrelétricas e barragens, determinados prédios públicos, terras da União e bloqueios de rodovias." Um exemplo concreto já havia ocorrido em Maio de 2007 com a invasão da Hidrelétrica de Tucuruí, no Estado do Pará, por mais de 600 integrantes do MST e Via Campesina, munidos de bomba incendiária e explosivos: "(...) ação que poderia ter paralisado as Regiões Norte, Nordeste e Centro-Sul, com resultados imensuráveis, caso o fornecimento de energia fosse suspenso". Então tá, deixar milhões sem energia seria simples ativismo social, "dificilmente" caracterizável como terrorismo segundo as conclusões do estudo de mais de um ano liderado pelo general Jorge....
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Fica o governo devendo a explicação de como agirá se, Deus nos livre, alguém explodir uma bomba em um clube ou numa igreja como fazem rotineiramente as FARC na Colômbia, seus co-associados no Foro de São Paulo. Aliás, como ficaria nosso governante e seu partido diante dessa lei por terem associação com organizações então legalmente definidas como terroristas?